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Manuel Bernardo de Sousa

Manuel Bernardo de Sousa
Data aproximada da primeira prisão
1959

Nascido em 1931, em Ndalatando, Kwanza-Norte (Angola), a 01-08-1931, filho de Manuel Ferreira de Sousa e de Ana António. Integrou no final da década de 50 o Grupo "Espalha Brasas", ou “Grupo dos Enfermeiros.”
Preso em 1959, foi julgado no Tribunal Militar Territorial de Luanda, no primeiro dos processos daquilo que ficou conhecido por “Processo dos 50” e condenado a 4 anos de prisão maior, medidas de segurança de 6 meses a 3 anos, prorrogáveis, e 15 anos de privação de direitos políticos.

Transferido para o Campo de Trabalho de Chão Bom, no Tarrafal, na ilha de Santiago, Cabo Verde, guardou a memória da humilhação a que foram submetidos à chegada: “Havia um portão grande, dentro do próprio quintal entrámos numa sala, e nessa sala apareceu um senhor português – de calção – e fomos postos todos nus. Nós éramos jovens – eu na altura tinha 28/29 anos – mas havia outros mais-velhos.” Alguns eram altos funcionários, andavam pelos 60 anos, tinham ali um familiar jovem: “E agora veja nós todos, numa sala, e mandarem-nos tirar a roupa toda.” Recorda também que, aos fins-de-semana, aos sábados, tinham que limpar a caserna: “Nós, os jovens, não deixávamos que os mais-velhos fizessem faxina. A faxina era nossa, dos mais jovens.”
Mesmo assim, não sofreram os trabalhos forçados a que julgavam ir ser submetidos e que os levavam a pensar que iam morrer. No caso dele, uma ideia fortalecida por já chegar de Luanda com uma fraqueza pulmonar: “Em 1961, quando os nossos camaradas atacaram as cadeias, era para nos libertar. Em vez disso, essa situação causou o seguinte: a Casa de Reclusão, onde nós estávamos, é perto do mar, era uma prisão militar e diante do ataque o capitão mandou soldar as portas todas onde nós estávamos presos com chapa de cinco milímetros. Passámos de uma camarata grande para uma mais estreita. (…) Alguns de nós, com a humidade do mar, contraímos um resfriamento muito grande. (…) constataram que estava com fraqueza pulmonar, com tendência para se transformar numa tuberculose.” Quando chegou ao Tarrafal, os enfermeiros temiam que não se aguentasse: “Felizmente nós tínhamos médico que nos ia ver uma vez por semana. (…) Tinha enfermeiro que me dava compridos, a alimentação até não era má (…) Havia companheiros que reforçavam a minha alimentação, principalmente ao pequeno-almoço.” Sobreviveu, e embora só tivesse apanhado quatro anos de prisão maior, só saiu em 1969, 10 anos depois da sua condenação.
Chegou ao Campo do Tarrafal a 25-02-1962 e saiu, com liberdade condicional, a 02-02-1969.

A filha, que deixara com três anos, tinha agora 13: “Felizmente, os amigos ajudaram a minha família.” Era difícil conseguir trabalho: “Todos os meses tínhamos que nos apresentar às autoridades. Éramos altamente vigiados, não tínhamos emprego porque não nos deixavam. Se quiséssemos trabalhar tínhamos de colaborar com eles, claro que não aceitámos isso. As autoridades combinaram com os padres nos fazer uma lavagem cerebral. Todos os dias tínhamos de ir à igreja de S. Domingos, às 5 horas, para receber a catequese. Aquilo era também um sistema de vigilância.” Ao fim de seis meses, conseguiu trabalho na enfermaria de Traumatologia do Hospital Maria Pia, com um salário inferior ao dos funcionários e sempre sob vigilância.
De regresso a Luanda, um dia que percorria a Avenida dos Combatentes, encontrou o antigo diretor do Campo do Tarrafal, José Pedro Queimado Pinto: “Vi-o a tomar café e fui cumprimenta-lo. Ele olhou para mim, pareceu que não se lembrava de mim, e eu disse-lhe: ‘Estive no Tarrafal, o senhor era o diretor.’ Ele mandou-me sentar e bebemos um café os dois.
Após a independência, Manuel Bernardo de Sousa viria a ocupar vários cargos de responsabilidade política: deputado, ministro dos Transportes, embaixador.
Defendia a preservação da memória do campo de concentração, e dizia ter por vezes saudades do Tarrafal: “Não do campo de trabalho do Chão Bom, em si, mas do povo cabo-verdiano, da luta que teve de travar. (..) Estando na prisão provei o cuscuz, a cachupa, tenho saudades da cachupa pobre, que é feita com peixe. Pescava-se muito atum no Tarrafal. Tenho saudades da música cabo-verdiana.” (…) “O cabo-verdiano é um povo que merece muito respeito. Eu tenho respeito e grande consideração pelo cabo-verdiano, pela forma como nos tratou, mas também pela luta que travou. (…) Os portugueses, quando nos mandaram para lá, talvez pensassem que os cabo-verdianos não sentissem a nossa luta. E, do outro lado, também havia cabo-verdianos.”
Conhecera Amílcar Cabral em Luanda: “O grande líder da revolução cabo-verdiana conheci-o aqui, a jogar à bola com os miúdos da Escola da Missão Evangélica, perto do Hotel Trópico. E a barbearia onde ele ia cortar o cabelo era aqui no Bairro Operário. (…) Ele não ia à barbearia dos portugueses. (…) Infelizmente morreu cedo. Não devia ter morrido. A machadada final ao colonialismo foi dada pela vitória do povo guineense.”

Texto e fotografia a partir de "Tarrafal-Chão Bom, Memórias e verdades", de José Vicente Lopes, a quem agradecemos.