Nasceu em Santa Catarina, Ilha de Santiago, Cabo Verde, em 1951. Em finais da década de 60 adere ao PAIGC, desenvolvendo trabalho político no interior da ilha de Santiago. É preso aos 19 anos, acusado da mobilização de vários elementos envolvidos no desvio do “Pérola do Oceano”::
“Houve uma infiltração da PIDE, que se aproveitou dos militantes, grande parte deles mobilizados por mim, e foram assaltar o Pérola do Oceano. Na sequência disso fui preso. Primeiro estive na Cadeia Civil da Praia, praticamente seis meses a ser torturado pela PIDE, e como não se conseguiu uma acusação coerente contra mim, mandaram-me para o Tarrafal, sem julgamento e sem dia de sair.”
Chega ao Tarrafal a 24 de Março de 1970:
“Fui com 14 ou 15 presos no mesmo dia. Fomos levados por uma coluna militar, escoltas da PIDE e da Polícia, com um aparato enorme. Fomos postos numa formatura, encontrámos polícias, guardas auxiliares e soldados — Tarrafal tinha um destacamento do exército português e havia agentes da PSP de Angola, de Cabo Verde, a direção administrativa, etc. E houve uma passagem dos presos, da PIDE para o campo. Fomos de seguida identificados, deram-nos os equipamentos — pratos, colheres, lençóis, etc. (…) Depois de passarmos por essa cerimónia, encontrámos os presos que lá estavam, de Santo Antão e S. Vicente. Era gente que eu já conhecia porque, do meu período de militância, ia visitá-los secretamente na Cadeia Civil: Lineu Miranda, Luís Fonseca, Carlos Tavares e Jaime Schofield.”
No Campo, a movimentação dos presos era limitada:
“Nós devíamos levantar às 6 horas, tínhamos que ir para a formatura às 6h30 ou 7h, éramos chamados, depois íamos para o refeitório, às vezes, depois disso, punham-nos na formatura novamente — contavam-nos, chamavam-nos e metiam-nos na cela. Repetiam isso ao meio-dia e voltam a fazê-lo à tarde. A princípio, tivemos dois ou três meses sem sol, só mais tarde começaram a dar-nos meia hora de sol por dia e no fim passaram a dar-nos meia hora de manhã e meia hora à tarde. Mas tínhamos que circular numa área muito limitada. Fomos avisados que não poderíamos nos aproximar três metros do arame farpado, onde havia depois o fosso e a muralha.”
Houve um período mais duro, em que, com outros presos, foi transferido para uma cela sem luz:
“Estivemos aí cerca de três meses – num quarto escuro, sem iluminação nem ventilação. Teoricamente, havia uma cama coberta com um lençol que era branco, mas eu tinha de apalpar para ver onde é que ficava a cama. (…) Quando deixámos essa secção, sentimos a nossa estrutura muscular a envelhecer. Uma pessoa, quando não se mexe, os músculos desfalecem ou tornam-se flácidos, desarticulam-se.”
Não eram os músculos os únicos a sofrer. Pedro recordava um preso que, já muito torturado na PIDE, tendo sido colocado muito tempo numa dessas celas, “ficou abalado e passou todo o tempo com perturbação mental e, quando saiu, morreu pouco tempo depois.”
Os presos organizavam-se para combater os efeitos da prisão:
“Os mais conscientes ou responsáveis fizeram tudo para tentar amenizar aquilo. Por exemplo, foi instituída uma escola, talvez o Lineu Miranda tivesse sido um dos maiores impulsionadores disso. Toda a gente participou. Quem não sabia ler nem escrever fez a quarta classe, os que tinham a quarta classe fizeram o segundo ano [do ciclo preparatório] e os do segundo ano fizeram o quinto [do secundário]. Eu estudei sozinho, fiz o sétimo ano. E também fiz pinturas, fazíamos artesanato, escondido, porque tínhamos que utilizar algum equipamento — limas, facas, etc. — considerado perigoso. Tivemos que inventar tudo isso para amenizar a situação.”
Embora houvesse dois grupos de presos, um, formado por 13 prisioneiros de Santiago, do 'Pérola do Oceano', e outro anterior,, de Santo Antão e S. Vicente, segundo Pedro Martins “os presos políticos comportaram-se como cabo-verdianos que pretendiam ser. Apesar de serem de ilhas diferentes, aí não havia 'sampadjudo' nem 'badio'- Por exemplo, descomplexadamente, os das outras ilhas falavam regularmente o crioulo de Santiago, porque a maioria era dessa ilha. A unidade e a solidariedade entre os presos e sobretudo a sua caboverdianidade foram exemplares.”
No dia da libertação do campo, embora avisados por um guarda cúmplice que “a coisa já virou” e o próprio diretor lhes tenha dito que houvera “uma mudança de governo em Portugal”, ainda lhe foi dito que continuariam presos. Mas em breve a situação se esclarecia:
“Às tantas, as portas se abriram, entrou o comandante da Polícia, alguns advogados, gente da Procuradoria da República, tudo meio confuso. Saímos, fomos encontrar os angolanos em formatura, no meio de fumo da terra, a dizer "Africa!, Africa!..." Mas quando nos viram, aí conseguimos fazer passar a mensagem, nos abraçámos e fomos de mãos dadas à porta e à saída vimos um grupo de militares. A uns 30 ou 50 metros levantei as mãos e dei gritos à independência, a Amílcar Cabral, com isso as pessoas irromperam para dentro do Campo. O tal militar português ainda me disse: "Veja a confusão que já arranjou".
Apesar do sofrimento que tantos presos políticos ali passaram, Pedro Martins defendia que o Tarrafal era uma memória a preservar:
“Eu vejo o Tarrafal não só um sítio onde houve coisas que nunca deveriam ter havido, mas também como um grande monumento à dignidade do povo cabo-verdiano. E um monumento que atesta que os cabo-verdianos e outros povos das colónias portuguesas quiseram emancipar-se e disseram não ao colonialismo. Um monumento à liberdade de Portugal, porque os anti-fascistas portugueses foram os primeiros a estreia-lo. E um sítio também onde houve concentração de líderes naturais, de gente culta, de estudantes, operários e camponeses, todos eles gente decidida e firme, com determinação, de fazer um bem não só para suas nossas terras, como também para a humanidade. (…) É portanto nessa base que eu tenho batalhado pela valorização genuína do Campo de Tarrafal. (…) Falei com dois ou três ministros, com a Presidência da República, no fim, conseguimos organizar uma associação de ex-presos políticos do Tarrafal, de que fui presidente. Conseguimos fazer um projecto de museu, de que eu sou o autor. Colaborámos com o Ministério da Cultura em pequenas restaurações devido ao estado avançado de degradação física da sua estrutura. Juntamente com a Câmara Municipal do Tarrafal fizemos um simpósio e os ex-presos foram condecorados por esse município.
Em 2006, consegui de uma entidade internacional, World Monument Fund, que o Campo de Concentração do Tarrafal fosse declarado como um dos cem patrimónios de carácter universal que precisavam de apoio para restauração. Essa organização é a mesma que ajudou a recuperar as Muralhas da China, algumas catedrais da Europa, inclusive na França e na Itália. Infelizmente, não se tem tirado vantagem disso.”
Autor do livro “Testemunho de um combatente”, Pedro Martins lamentava, também, o esquecimento a que foram votados os ex-presos do Tarrafal:
“Os ex-presos políticos foram tratados como objetos descartáveis pelos poderes com responsabilidades legais e políticas sobre as suas respetivas condições, tanto por Portugal como por Cabo Verde. As autoridades cabo-verdianas, convenientemente, nunca levantaram essa questão aos responsáveis do Estado português. O governo de Cabo Verde tem medo, por causa da cooperação com Portugal. Isto é para dizer que o pessoal foi tratado porcamente, como "filhos de fora". Mas nós temos a consciência que segurámos a coisa aqui e criámos as bases para que eles pudessem entrar mais tarde (…) De qualquer forma, nisto tudo, nós sabemos quem é quem e ninguém nos tirará jamais o orgulho pela causa que nos batemos. Tarrafal ficará para sempre como testemunha.”
Texto e fotografia a partir de "Tarrafal-Chão Bom, Memórias e verdades", de José Vicente Lopes, a quem agradecemos.