1970 é o ano em que, enfim, o ditador António Oliveira Salazar morre, a 27 de julho, com 81 anos de idade, tendo-lhe sucedido, dois anos antes, Marcelo Caetano.
Foi um ano marcado por importantes acontecimentos respeitantes à guerra colonial, que, iniciada em Angola em 1961, se arrastava agora também na Guiné e em Moçambique.
No dia 21 de fevereiro de 1970, realizou-se em Lisboa, convocada pelos Comités de Luta Anticolonial (CLACS), uma manifestação contra a guerra colonial, violentamente reprimida.
Entretanto, decorria, de 27 a 29 de junho de 1970, em Roma, a Conferência Internacional de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas, que contou com a presença de 177 organizações de 64 países, com destaque para as delegações do PAIGC, da FRELIMO e do MPLA, dirigidas, respetivamente, por Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos e Agostinho Neto.
A Conferência constituiu uma grande jornada de afirmação daqueles movimentos e, também, do seu relacionamento com múltiplas organizações internacionais e, especialmente, italianas.
E no dia 1 de julho, há 50 anos, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos e Agostinho Neto foram recebidos pelo Papa Paulo VI.
Como confessaria o oficioso Diário de Notícias, obviamente uns dias depois, foi com “surpresa e profunda mágoa” que tomaram conhecimento da audiência do Papa aos três dirigentes nacionalistas: “Insólito e lamentável/O Papa recebeu terroristas responsáveis pela chacina de milhares de cristãos”.
E Marcelo Caetano lá foi à televisão, no dia 6 de julho, ensaiar malabarismos diversos para desqualificar o acontecimento, enquanto chamava a Lisboa o embaixador de Portugal no Vaticano, “esperando-se que nos sejam prestadas pela Santa Sé os esclarecimentos convenientes” (Nota oficiosa do MNE de 5 de julho de 1970).
A verdade é que Paulo VI havia recebido os três dirigentes, o que constituiu, seguramente, um dos factos com maior impacto internacional relativamente à questão das colónias portuguesas.
Essa audiência terá sido solicitada ao secretário do cardeal Giovanni Benelli, Substituto da Secretaria de Estado do Vaticano, pela jornalista italiana Marcella Glisente, presidente da Associação Italiana dos Amigos da Présence Africaine, que aliás Amílcar Cabral conhecera em Paris. Também o arcebispo de Conacri, Raymond Marie Tchidimbo, se dirigiu a Benelli apoiando esse pedido, para que a Igreja reconhecesse os “justos direitos à dignidade e à autodeterminação dos povos africanos”.
E, com efeito, a 30 de junho, um dia após o encerramento da Conferência, os três dirigentes africanos foram informados que iriam ser recebidos em audiência privada pelo Papa no dia 1 de julho, às 12.15, na Sala dos Paramentos.
Nesse dia 1 de julho, em Moçambique, o general Kaúlza de Arriaga, comandante-chefe das Forças Armadas em Moçambique, lança uma gigantesca e dispendiosa operação designada Nó Górdio, que durará sete meses, envolvendo cerca de 35 mil militares portugueses e de recrutamento local. Essa operação visava destruir as bases e campos militares da FRELIMO no Planalto dos Macondes, no norte de Moçambique e o abastecimento dos guerrilheiros – o que foi em larga medida conseguido temporariamente, tendo, no entanto, aquele Movimento de Libertação não só reocupado o território, como, sobretudo, expandido a sua atuação para o sul de Moçambique. Tratou-se, por isso, de uma operação cujo resultado final favoreceu em larga medida o crescimento da implantação da FRELIMO e o robustecimento da sua capacidade política e militar, deixando, pelo contrário, as forças armadas coloniais esgotadas e em crescentes dificuldades.
Há 50 anos, no mesmo dia em que Kaúlza de Arriaga e todo o seu Estado-Maior davam início, em Mueda, no norte de Moçambique, à Operação Nó Górdio, o Papa Paulo VI recebia no Vaticano os representantes dos Movimentos de Libertação de Angola, Guiné e Moçambique, respetivamente Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos.
Ler A audiência inédita de Paulo VI que abalou o Estado Novo, da autoria de João Miguel Almeida, publicado no jornal digital "7 Margens", de 1 de julho de 2020.