Senhor Presidente da República,
Senhora Presidente da Câmara Municipal de Santa Catarina,
Senhor Presidente do Supremo Tribunal da Justiça,
Senhora Representante do Governo,
Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz,
Senhoras Deputadas e senhores Deputados,
Senhoras e Senhores Embaixadores,
Estimados Combatentes da Liberdade,
Caros Dirigentes da FAC,
Caros Dirigentes da ACOLP,
Ilustres Convidadas e Convidados,
Amigas e Amigos,
Quis a FAC que esta homenagem “cinquentenária”, ao seu patrono, Amílcar Cabral, incorporasse o símbolo forte do regresso às raízes. Daí, a escolha da sua realização, nesta cidade de Assomada, Concelho de Santa Catarina, em parceria com a sua Câmara Municipal, a quem manifestamos os nossos renovados agradecimentos. Igualmente, impõe-se-nos destacar e agradecer as parcerias e contribuições insubstituíveis da Universidade de Santiago e do Liceu Amílcar Cabral, cujas representações, neste ato, cumprimentamos com simpatia.
Neste dia especial, saúdo, daqui, da cidade de Assomada, com muito respeito e amizade, os meus camaradas, alguns octogenários como eu, que viveram a tragédia do assassinato de Amílcar Cabral, na Guiné-Conacri, e não se deixaram abater por essa traição ignóbil, erguendo bem alto as cabeças, mantendo-se fiéis e prosseguindo com determinação o árduo combate libertador, que tínhamos solidariamente abraçado, conduzindo-nos à vitória.
Aos meus camaradas, combatentes da liberdade, presentes, neste ato, expresso a minha homenagem fraterna, recíproca e permanente!
O dia de hoje tem um significado muito especial, para mim e, certamente, para todos nós! De janeiro 1973 a janeiro de 2023, decorreram cinquenta anos! Vamos rememorar o facto histórico transcendente que aconteceu em 1973.
Tenho o privilégio da idade de ter acompanhado essa traição vergonhosa, ter enfrentado as suas consequências e ter contribuído para a nossa vitória e para a superação do seu resultado trágico, o assassinato do nosso Líder, Amílcar Cabral.
Este espaço de tempo, de cinquenta anos, tem-me permitido pensar bastante sobre esse acontecimento trágico da nossa luta de libertação. Nesse dia, encontrava-me muito longe daqui, num ambiente físico e humano diferente, de chuva, de calor, de paludismo, de mosquitos, mas, também, de homens armados, de dúvidas e de muito risco de vida. Vivia no meio do mato, na fronteira sul, entre a Guiné-Bissau e a Guiné-Conacri.
Na nossa base guerrilheira, em Kandiafara, fomos surpreendidos e sacudidos pela notícia da tragédia, da perfídia e da traição que tinham caído sobre nós. Porém, o mais importante foi que soubemos e pudemos resistir, suplantar e vencer as suas graves consequências. Apesar das dificuldades materiais e espirituais causadas, ninguém e nada conseguiu desviar-nos dos nossos objetivos e compromissos políticos, nem impedir que estivéssemos, aqui e hoje, ao vosso lado.
Estamos, aqui, livres e independentes! Enfrentamos e vencemos as armadilhas da perfídia, da manipulação e da compra de consciências arquitetados pelos nossos inimigos, e, o mais grave, da decadência moral e da traição nas nossas fileiras. Contudo, apesar das enormes dificuldades, dos obstáculos e dos elevados riscos provocados, conseguimos sair vitoriosos, dessa armadilha.
Na vida de combatente da liberdade, tínhamos percebido que a morte era uma espécie de companheira de viagem, presente e traiçoeira, daqueles que ousaram enfrentar o poder colonial e lutar para que se libertarem do seu domínio e opressão, enfrentando-o numa luta política-armada de libertação desigual. Na nossa caminhada inclemente, nem todos tiveram a sorte de iludir a morte espreitante. Difícil! Porque era a arma principal do inimigo, que, a cada momento, planeava a nossa morte. Fazia tudo para nos massacrar e nos destruir. Era a doutrina primária em que se estribava e se reproduzia a dominação colonial, cujos princípios constitutivos básicos eram a violência, o desrespeito, o esmagamento físico e moral da sociedade colonizada, a coisificação e a infantilização do colonizado, com o propósito cruel e desumano de o humilhar, de quebrar-lhe a vontade de ser ele-mesmo e da sua emancipação, enfim, de o transformar em serviçal submisso e sem personalidade própria.
Apreendemos, ainda, que os assassinatos e as mortes trágicas de líderes dos movimentos de resistência à ocupação colonial e das lutas de libertação contra a dominação colonial têm sido outras constantes cruéis das histórias da resistência e das lutas libertadoras dos povos colonizados. Foram marcos inevitáveis dos processos da colonização, assim como, do seu contrário, das lutas de libertação da dominação colonial. Nada de muito estranho, também! Esses crimes eram encobertos, minimizados e desprezados porque as vítimas eram seres inferiores e insignificantes, os colonizados.
Aprendemos, mais, que a traição e o “mercenarismo” têm sido mais outras constantes perversas e marcas degradantes das guerras coloniais e das lutas de libertação nacional, resultantes, essencialmente, de fraquezas espirituais, sociais, culturais e memoriais dos homens colonizados. Amílcar Cabral insistia na necessidade urgente da luta contra “nós-mesmos” e da superação das nossas fraquezas éticas, culturais, memoriais e sociais. Tratou, por diversas vezes, a problemática da traição dos colonizados nas resistências e nas lutas africanas de libertação.
Em 1961, no Cairo, na sua comunicação à III Conferência dos Povos Africanos, afirmou limpidamente: “Os nossos inimigos estão firmemente decididos a desferirem-nos golpes mortais e a transformar as nossas vitórias em derrotas. Sabem, para atingir este fim, utilizar o instrumento mais indicado: os traidores africanos. …apesar das forças armadas, os imperialistas não dispensam os traidores”.
Em 1971, em Boké, Guiné-Conacri, na reunião anual do CSL que analisou as causas e as consequências da “Operação Mar Verde”, o assalto a Conacri pela Marinha Portuguesa, os comportamentos e as motivações da traição de um número expressivo de quadros superiores, dirigentes e ministros, aliando-se aos colonialistas, nossos inimigos, numa agressão criminosa contra o seu próprio país e a sua liderança. Assinalava com angústia: “Profundamente doloroso é o facto de a traição resultar não de um projeto para mudar a situação no país …, mas, simplesmente, porque os responsáveis se venderam ao inimigo, aos colonialistas e aos imperialistas”. Referindo-se à situação interna afirmava: “Nós, do PAIGC, devemos estar cientes de que seja quem for é capaz de trair, mas, também, que cada um é capaz de ser um modelo quanto à honestidade, seriedade e fidelidade ao seu Partido”. Questionava-se, consternado: “o que poderá justificar a enorme miséria moral a que presenciámos?”
Em maio de 1972, em Conacri, por ocasião da homenagem prestada a Kwame Krumah, protestava: “Não venham dizer-nos que Kwame Krumah morreu com um cancro na garganta ou qualquer outra doença. Não, Krumah foi morto pelo cancro da traição, cujas raízes devem ser extirpadas da África …!”
A propósito da traição e da fraca consciência política dos colonizados, tem interesse o conteúdo da carta que me escreveu a 18 de março de 1972, que passo a ler. (Ver em nota final)
Além disso, num memorando interno, de março de 1972, dirigido aos dirigentes e quadros do PAIGC, dava a conhecer e alertava para o plano criminoso e minucioso do Governo colonial de destruição, por dentro, do PAIGC e do próprio assassinato do seu Secretário-Geral. Com efeito, Amílcar Cabral não ignorava os riscos latentes de infiltração dos agentes coloniais e de traição que existiam no nosso seio. Tinha expressado isso, por diversas vezes, a fim de nos advertir, ao afirmar que “no estádio a que chegou a nossa luta, ela só pode ser destruída de dentro”, isto é, por nós-mesmos, e que quem o quisesse assassinar, algum dia, sairia do nosso seio. No entanto, reiterava a sua confiança de que a traição não destruiria a nossa luta e a certeza de que a sua morte não seria jamais o seu fim, porquanto, sabia que tinha preparado “herdeiros políticos” capazes de a prosseguir até à vitória final sobre o colonialismo português. Questiono-me: teria tido, Amílcar Cabral, a premonição do que viria acontecer?
Soubemos quem foram os autores e castigámos severamente esses traidores miseráveis! Sabíamos quem foram os mandantes e os organizadores do crime. Como resposta certa e apropriada, derrotamo-los no campo de batalha e contribuímos decisivamente para a derrocada e a mudança do seu sistema político, colonialista, retrógrado e criminoso. Foram estas, as nossas respostas militares e políticas, de pronto e decisivas, ao golpe violento, arrasador e doloroso que o poder colonial e os seus lacaios nos tinham desferido.
Passaram já 50 anos sobre este facto político, militar e histórico de grande magnitude, cujos diversos impactos estão ainda por analisar e aprofundar, e que acabaria, o entanto, por alterar, de alguma forma, o curso e o desenvolvimento do programa político libertador do PAIGC e da nossa própria história. É certo que nos recompusemos e prosseguimos a luta, com uma nova liderança e com a vontade renovada de vencer.
Estava previsto, nos objetivos da sua conceção, que o assassinato significasse a desarticulação das nossas estruturas políticas e militares e a debandada dos combatentes no geral e dos combatentes cabo-verdianos, em especial. Este desígnio assustador, traiçoeiro e criminoso falhou, totalmente. Pois, conseguimos reerguer-nos, desmantelar o projeto arquitetado e derrotar as forças armadas coloniais de ocupação.
Não resta dúvida alguma de que vencemos a luta armada, a “guerra de libertação”. Contudo, não estou tão seguro de que tivéssemos ganhado inteiramente a “luta político-armada” de libertação nacional, tal como tinha sido planeada por Cabral. Honestamente, considero que acontecimentos posteriores vieram indiciar que não tínhamos conseguido materializar, inteiramente, o nosso objetivo primário.
Por outro lado, era notório que o PAIGC não dispunha de um sucessor, com iguais capacidades e as mesmas virtudes, que pudesse substituir completamente Amílcar Cabral. Trabalhámos com os melhores recursos humanos de que dispúnhamos. Foi com eles que conseguimos triunfar. Contudo, estou convencido de que com Amílcar Cabral, em vida, o curso da nossa história e da história do PAIGC seria diferente. Como? Não estou em condições de responder, nem ouso prognosticá-lo, porque não seria nem judicioso, nem politicamente honesto.
“Se a morte trágica de Amílcar Cabral, com o seu assassínio vil e criminoso, planeado enquanto a última “solução militar” de salvação do império em risco de derrocada, não lhe permitiu presenciar a vitória que vinha meticulosa e judiciosamente construindo, porém, os seus herdeiros e continuadores, entre os quais me incluía, conseguiram assegurar, leal e heroicamente, o seu “excecional triunfo pós-morte”, quatro meses após o seu desaparecimento, e não permitiram que “morresse e se apagasse”, ingloriamente, desse crime ignóbil, contribuindo desta maneira para a perpetuação da sua memória.”
É, precisamente, este triunfo pós-morte extraordinário, que celebramos, hoje, pois, representou a vitória decisiva sobre o império colonial e a dominação colonial, a emergência dos fundamentos patrióticos do Estado soberano de Cabo Verde e, igualmente, determinou a falência do regime colonial-fascista, a precipitação da democratização em Portugal e a aceleração dos processos de libertação das demais colónias.
No meu espírito, está sempre presente a pergunta: como foi possível tudo isso? Como conseguimos isso? Como foi possível partir de baixo, resistir aos ataques e assaltos do inimigo, crescer, fortalecer-se, aperfeiçoar-se e ganhar o combate emancipador? Como foi possível triunfar sobre as traições e as adversidades?
O garante da possibilidade nossa vitoriosa consistiu, por começar, no cumprimento rigoroso do legado valioso da liderança patriótica, lúcida, pedagógica, ética e visionária de Amílcar Cabral.
A minha convicção é que os colonialistas não podiam derrotar-nos; os traidores, também, não podiam. Pois, a apropriação do ideal da luta e da libertação, pelos combatentes armados, políticos e civis, assim como, a sua identificação e o seu compromisso sólido com a pessoa de Amílcar Cabral eram extremamente fortes, tornando a inversão desse compromisso quase impraticável. Os ideais da libertação tinham penetrado no íntimo das pessoas comuns, incluindo as populações civis das regiões libertadas, tornando-as apoiantes seguros da luta da libertação. Esses homens e essas mulheres generosas e patriotas constituíam a força física principal do PAIGC.
Aproveito este momento simbólico muito forte para recordar e relevar os momentos determinantes da construção da nossa vitória e, ao mesmo tempo, levantar os nomes de todos aqueles que participaram na sua preparação e contribuíram para a materialização do triunfo final da nossa luta epopeica de libertação nacional, transformando o que “pudesse parecer impossível em realidade”.
Ainda, no final do ano de 1972, antecipando o impacto assegurador da próxima introdução no teatro de guerra dos mísseis antiaéreos Strella-2, cujos atiradores já estavam em preparação na URSS, Amílcar Cabral deu ao Comando da Frente Sul, a missão rigorosa da organização do ataque e da tomada do quartel estratégico de Guiledje. A seguir, foi iniciada a operação de reconhecimento.
Em fevereiro de 1973, após os funerais oficiais realizados em Conacri, o Comité Executivo de Luta do PAIGC decidiu a realização de uma operação de âmbito nacional, a que designou “Operação Amílcar Cabral”. De regresso às nossas funções na Frente Sul, metemos as mãos à obra e iniciamos uma preparação rigorosa da operação contra Guiledje, sob a liderança do Comandante da Frente, Nino Vieira. Fui encarregado da organização dos serviços de retaguarda a fim de assegurar que todos os meios militares, alimentares e outros estivessem ao serviço da realização e do sucesso dessa operação.
Em início de março, tinham sido recomeçadas as atividades de preparação da operação Guiledje, com a retomada dos trabalhos de reconhecimento, o início da reunião e concentração progressiva das forças combatentes de infantaria, de artilharia e de “engenharia” (sapadores), a mobilização do armamento e das munições necessárias, de produtos alimentares e de meios de transporte, acompanhado do começo do aperto progressivo ao cerco do quartel-alvo.
Em fins de março e inicio de abril, tinham chegado à nossa Frente os mísseis AA Strella-2 acompanhados dos respetivos atiradores, facto que tinha constituído um reforço inestimável da confiança e da autoestima dos nossos combatentes.
Em abril, tinha sido assegurado o cerco ao quartel-alvo e começado seu bombardeamento com a artilharia ligeira. No dia 25, foi abatido o primeiro caça Fiat 91, facto que constituiu uma surpresa desmoralizadora para o Estado-Maior português e uma ameaça aterradora para a aviação militar e o futuro das forças armadas destacadas na Guiné. Em seguida, foi abatido, três dias depois, no setor do Boé, o caça Fiat 91 pilotado pelo comandante da Força Aérea.
No início de maio, intensificaram-se os bombardeamentos do quartel-alvo, utilizando os morteiros 120 e as demais armas de artilharia e de infantaria. A 15 do mesmo mês, numa reunião de Comandos, em Bissau, o Comandante-Chefe, General Spínola, reconhecia que não dispunha recursos capazes de contrapor eficientemente aos ataques e aos meios militares das nossas FARP e que a guerra colonial de agressão estava praticamente perdida, facto que deu conhecimento ao seu Governo. No dia 22, tinha terminado a resistência da unidade militar do quartel-alvo, que debandara pela calada da noite, por um trilho de caçadores desconhecido pelo nosso grupo de reconhecimento. Essa derrota constituiu o elemento fundamental do “triunfo pós-morte” do nosso herói Amílcar Cabral. O ataque a Guiledje era complementado pela operação de neutralização da unidade militar instalada em Gadamael, que dispunha de meios e tinha a papel de socorro a Guiledje. As suas instalações foram totalmente destruídas, acrescidas de inúmeras baixas.
A Operação Amílcar Cabral tinha-se desenvolvido nas outras duas Frentes. Na Frente Norte, onde houve confrontações violentas, o ataque principal foi dirigido, de 6 de abril a 19 de maio, contra o quartel de Guidadje, cujas instalações foram arrasadas, com pesadas baixas dos seus efetivos. Nas operações em seu apoio e resgate, as forças coloniais sofreram elevadas baixas humanas, perderam vários veículos transportes militares e foram abatidos 3 aviões de hélice e um caça Fiat 91. Na tentativa de reduzir a pressão ao cerco a que estava sujeito Guidadje, as forças coloniais lançaram um batalhão das suas forças de elite contra a base principal das FARP, em Koumbangor, em que foram fortemente castigados, obrigando-os a abandonar, no terreno, mais de uma vintena de cadáveres.
Como desfecho final das vitórias políticas e militares arduamente conseguidas, o PAIGC proclamou, unilateralmente, a 24 de setembro de 1973, a fundação da República da Guiné-Bissau, aliás, facto antecipado por Amílcar Cabral na sua mensagem de primeiro de janeiro. Encerrava-se, então e deste modo vitorioso, o ciclo político da dominação colonial portuguesa.
A nossa vitória incontestável foi construída, a par e passo, e garantida por dádivas e dedicações generosas e patrióticas de todos os combatentes e resistentes, e, especialmente, pela dádiva pessoal generosa e incalculável, incluindo a própria vida, do nosso Líder, Amílcar Cabral, cujo legado político, cultural e ético deve inspirar a todos os patriotas e apaixonados por Cabo Verde.
Finalmente, Senhor Presidente da República, Senhora Presidente da Câmara Municipal de Santa Catarina, Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Senhora Representante do Governo, Ilustres Convidados e Convidadas, Estimadas Amigas e Amigos, contamos com a vossa generosa indulgência pela nossa omissão das regras protocolares e de cortesia devidas, ao não vos ter agradecido, expressamente, pela vossa ilustre participação. Porém, no nosso espírito, Amílcar Cabral é todos nós, é nosso, e todos nós temos uma dívida de reconhecimento e de gratidão para com ele!
Até sempre, camarada Amílcar Cabral!
Assomada, 20 de janeiro de 2023
Pedro Pires