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Pedro Rolando do Reis Martins

Pedro Rolando do Reis Martins
Data aproximada da primeira prisão
agosto 1970

Nasceu em Santa Catarina, Ilha de Santiago, Cabo Verde, em 1951. Em finais da década de 60 adere ao PAIGC, desenvolvendo trabalho político no interior da ilha de Santiago. É preso aos 19 anos, acusado da mobilização de vários elementos envolvidos no desvio do “Pérola do Oceano”::
“Houve uma infiltração da PIDE, que se aproveitou dos militantes, grande parte deles mobilizados por mim, e foram assaltar o Pérola do Oceano. Na sequência disso fui preso. Primeiro estive na Cadeia Civil da Praia, praticamente seis meses a ser torturado pela PIDE, e como não se conseguiu uma acusação coerente contra mim, mandaram-me para o Tarrafal, sem julgamento e sem dia de sair.”
Chega ao Tarrafal a 24 de Março de 1970:
“Fui com 14 ou 15 presos no mesmo dia. Fomos levados por uma coluna militar, escoltas da PIDE e da Polícia, com um aparato enorme. Fomos postos numa formatura, encontrámos polícias, guardas auxiliares e soldados — Tarrafal tinha um destacamento do exército português e havia agentes da PSP de Angola, de Cabo Verde, a direção administrativa, etc. E houve uma passagem dos presos, da PIDE para o campo. Fomos de seguida identificados, deram-nos os equipamentos — pratos, colheres, lençóis, etc. (…) Depois de passarmos por essa cerimónia, encontrámos os presos que lá estavam, de Santo Antão e S. Vicente. Era gente que eu já conhecia porque, do meu período de militância, ia visitá-los secretamente na Cadeia Civil: Lineu Miranda, Luís Fonseca, Carlos Tavares e Jaime Schofield.”
No Campo, a movimentação dos presos era limitada: 
“Nós devíamos levantar às 6 horas, tínhamos que ir para a formatura às 6h30 ou 7h, éramos chamados, depois íamos para o refeitório, às vezes, depois disso, punham-nos na formatura novamente — contavam-nos, chamavam-nos e metiam-nos na cela. Repetiam isso ao meio-dia e voltam a fazê-lo à tarde. A princípio, tivemos dois ou três meses sem sol, só mais tarde começaram a dar-nos meia hora de sol por dia e no fim passaram a dar-nos meia hora de manhã e meia hora à tarde. Mas tínhamos que circular numa área muito limitada. Fomos avisados que não poderíamos nos aproximar três metros do arame farpado, onde havia depois o fosso e a muralha.” 
Houve um período mais duro, em que, com outros presos, foi transferido para uma cela sem luz:
“Estivemos aí cerca de três meses – num quarto escuro, sem iluminação nem ventilação. Teoricamente, havia uma cama coberta com um lençol que era branco, mas eu tinha de apalpar para ver onde é que ficava a cama. (…) Quando deixámos essa secção, sentimos a nossa estrutura muscular a envelhecer. Uma pessoa, quando não se mexe, os músculos desfalecem ou tornam-se flácidos, desarticulam-se.”
Não eram os músculos os únicos a sofrer. Pedro recordava um preso que, já muito torturado na PIDE, tendo sido colocado muito tempo numa dessas celas, “ficou abalado e passou todo o tempo com perturbação mental e, quando saiu, morreu pouco tempo depois.”
Os presos organizavam-se para combater os efeitos da prisão:
“Os mais conscientes ou responsáveis fizeram tudo para tentar amenizar aquilo. Por exemplo, foi instituída uma escola, talvez o Lineu Miranda tivesse sido um dos maiores impulsionadores disso. Toda a gente participou. Quem não sabia ler nem escrever fez a quarta classe, os que tinham a quarta classe fizeram o segundo ano [do ciclo preparatório] e os do segundo ano fizeram o quinto [do secundário]. Eu estudei sozinho, fiz o sétimo ano. E também fiz pinturas, fazíamos artesanato, escondido, porque tínhamos que utilizar algum equipamento — limas, facas, etc. — considerado perigoso. Tivemos que inventar tudo isso para amenizar a situação.”
Embora houvesse dois grupos de presos, um, formado por 13 prisioneiros de Santiago, do 'Pérola do Oceano', e outro anterior,, de Santo Antão e S. Vicente, segundo Pedro Martins “os presos políticos comportaram-se como cabo-verdianos que pretendiam ser. Apesar de serem de ilhas diferentes, aí não havia 'sampadjudo' nem 'badio'- Por exemplo, descomplexadamente, os das outras ilhas falavam regularmente o crioulo de Santiago, porque a maioria era dessa ilha. A unidade e a solidariedade entre os presos e sobretudo a sua caboverdianidade foram exemplares.”
No dia da libertação do campo, embora avisados por um guarda cúmplice que “a coisa já virou” e o próprio diretor lhes tenha dito que houvera “uma mudança de governo em Portugal”, ainda lhe foi dito que continuariam presos. Mas em breve a situação se esclarecia:
“Às tantas, as portas se abriram, entrou o comandante da Polícia, alguns advogados, gente da Procuradoria da República, tudo meio confuso. Saímos, fomos encontrar os angolanos em formatura, no meio de fumo da terra, a dizer "Africa!, Africa!..." Mas quando nos viram, aí conseguimos fazer passar a mensagem, nos abraçámos e fomos de mãos dadas à porta e à saída vimos um grupo de militares. A uns 30 ou 50 metros levantei as mãos e dei gritos à independência, a Amílcar Cabral, com isso as pessoas irromperam para dentro do Campo. O tal militar português ainda me disse: "Veja a confusão que já arranjou".
Apesar do sofrimento que tantos presos políticos ali passaram, Pedro Martins defendia que o Tarrafal era uma memória a preservar:
“Eu vejo o Tarrafal não só um sítio onde houve coisas que nunca deveriam ter havido, mas também como um grande monumento à dignidade do povo cabo-verdiano. E um monumento que atesta que os cabo-verdianos e outros povos das colónias portuguesas quiseram emancipar-se e disseram não ao colonialismo. Um monumento à liberdade de Portugal, porque os anti-fascistas portugueses foram os primeiros a estreia-lo. E um sítio também onde houve concentração de líderes naturais, de gente culta, de estudantes, operários e camponeses, todos eles gente decidida e firme, com determinação, de fazer um bem não só para suas nossas terras, como também para a humanidade. (…) É portanto nessa base que eu tenho batalhado pela valorização genuína do Campo de Tarrafal. (…) Falei com dois ou três ministros, com a Presidência da República, no fim, conseguimos organizar uma associação de ex-presos políticos do Tarrafal, de que fui presidente. Conseguimos fazer um projecto de museu, de que eu sou o autor. Colaborámos com o Ministério da Cultura em pequenas restaurações devido ao estado avançado de degradação física da sua estrutura. Juntamente com a Câmara Municipal do Tarrafal fizemos um simpósio e os ex-presos foram condecorados por esse município.
Em 2006, consegui de uma entidade internacional, World Monument Fund, que o Campo de Concentração do Tarrafal fosse declarado como um dos cem patrimónios de carácter universal que precisavam de apoio para restauração. Essa organização é a mesma que ajudou a recuperar as Muralhas da China, algumas catedrais da Europa, inclusive na França e na Itália. Infelizmente, não se tem tirado vantagem disso.”
Autor do livro “Testemunho de um combatente”, Pedro Martins lamentava, também, o esquecimento a que foram votados os ex-presos do Tarrafal:
“Os ex-presos políticos foram tratados como objetos descartáveis pelos poderes com responsabilidades legais e políticas sobre as suas respetivas condições, tanto por Portugal como por Cabo Verde. As autoridades cabo-verdianas, convenientemente, nunca levantaram essa questão aos responsáveis do Estado português. O governo de Cabo Verde tem medo, por causa da cooperação com Portugal. Isto é para dizer que o pessoal foi tratado porcamente, como "filhos de fora". Mas nós temos a consciência que segurámos a coisa aqui e criámos as bases para que eles pudessem entrar mais tarde (…) De qualquer forma, nisto tudo, nós sabemos quem é quem e ninguém nos tirará jamais o orgulho pela causa que nos batemos. Tarrafal ficará para sempre como testemunha.”
 

Texto e fotografia a partir de "Tarrafal-Chão Bom, Memórias e verdades", de José Vicente Lopes, a quem agradecemos.