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Memória Viva do Tarrafal

Tipologia
Memórias
Autor
Gilberto de Oliveira
Editora
Edições avante!
Local Ed.
Lisboa
Data
1987

"Com a entrada do capitão Olegário Antunes, os presos tiveram a possibilidade de “organizar as brigadas de serviço para os trabalhos, de acordo com as condições físicas de cada um – brigada de limpeza, faxinas às casernas e à cozinha, distribuição de gentes para alguns serviços nas oficinas, etc.”, a poderem ter livros em seu poder e a organizar uma biblioteca, a montar um campo de futebol e outro de voleibol.
De quando em vez e pelos motivos mais fúteis, tais regalias eram retiradas."
(...)
“O trabalho a que nos forçavam foi assumindo várias formas, conforme as circunstâncias e, sobretudo, conforme os directores do campo. Houve períodos em que tinha mais interesse por ser razoável. Mas alguns eram trabalhos inúteis. Trabalhar por trabalhar, para ocupar o tempo, por obediência a um regime de castigo, sem outra finalidade que não fosse obrigarem-nos para nos amarfanharem, para nos tornarem a vida o mais amarga possível.”
(...)
“Todos os dias, logo que o dia despontava, na formatura da manhã, eram constituídas as várias brigadas de trabalho que iam sendo separadas: pessoal de enfermagem e faxinas às casernas e à cozinha, que ficavam no campo; o grupo para a pedreira; o grupo para a capinagem à volta do campo, para a terraplenagem e abertura de caminhos, para o transporte de água, para os despejos, para o carrego e transporte de pedra, etc.
Quando passaram a funcionar as rudimentaríssimas oficinas de serralharia civil e de mecânica, carpintaria e marcenaria, assim como a barbearia, a alfaiataria, a sapataria e a cantaria, logo no início da formatura, era separado o pessoal destinado a esses diversos serviços.”
(...)
“O espaço útil de que dispúnhamos dentro das barracas era pouco, ou melhor, nenhum pois que as camas enchiam tudo, dispostas com intervalos de menos de meio de metro, de ambos os lados, deixando, no meio, um estreito corredor de pouco mais meio metro em direcção às abas de lona que serviam de entrada. Todavia, era aí que dormíamos, que muitas vezes comíamos, que convivíamos, que fazíamos as nossas leituras, que escrevíamos, que estudávamos, que jogávamos, que tratávamos dos doentes e dos moribundos nos períodos mais agudos, que resistíamos, enfim, ao frustrado assassínio colectivo a que nos tinha votado.”
(...)
“A parte da Ordem do Dia que era lida na nossa presença dizia invariavelmente: «Fulano de tal … é castigado em … dias de isolamento (era assim que designavam o castigo na Frigideira), com dias alternados». A alimentação em dias alternados significava um dia a pão e água quente e outro dia a pão e água fria. (…) O castigo na Frigideira consistia, portanto, em isolamento, fome, asfixia lenta, desidratação, calor sufocante de dia, arrefecimento brusco de noite e, muitas vezes, espancamentos.”
(...)
“O que não aconteceu, de facto, foi que as divergências ideológicas tivessem alguma vez enfraquecido a unidade colectiva frente aos carcereiros. Nesse aspecto, expressou-se sempre a existência de um bloco de interesses comuns. Quem eram os castigados? Tanto eram os comunistas como os anarquistas ou os chamados republicanos.”