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Aquele dia doloroso e trágico de 20 de janeiro de 1973

Publicamos aqui o texto da intervenção do Comandante Pedro Pires no Colóquio "Amílcar Cabral e a História do Futuro", que decorreu nos dias 13 e 14 de janeiro de 2023, em Lisboa, no Auditório António de Almeida Santos, Assembleia da República, com organização do CES (Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra), IHC (Instituto de História Contemporânea, NOVA-FCSH), Cultra ("Abril é Agora").

 

Senhor Embaixador de Cabo Verde,
Senhor Professor Fernando Rosas,
Senhoras e senhores Conferencistas,
Senhoras e senhores moderadores,
Caros Amigos e caras Amigas,
Caro Miguel Cardina:

Antes de mais, agradeço o vosso honroso convite para participar neste Colóquio dedicado a “Amílcar Cabral e a História do Futuro”. Confesso que este título me intrigou. No entanto, estou convencido de que a perceção e a leitura corretas e verdadeiras dos factos históricos e da história da humanidade, no geral, poderão contribuir para mitigar e, possivelmente, superar os impactos duradouros dos erros e das violências do passado, influenciar, afirmativamente, os cursos do presente e do futuro, libertando-os, justamente, dos pesos do passado.

Ao preparar-me para esta participação, surgiram-me algumas dúvidas: qual seria o meu papel e o que os organizadores esperam da minha presença? Esperam conhecer uma testemunha de um facto histórico trágico ou ouvir o seu testemunho? Por outro lado, o que poderei trazer de útil, de interesse para os vossos trabalhos e as vossas reflexões?

Mas, antes de prosseguir, gostaria de vos pedir que não esperem de mim que seja objetivo, isento e imparcial. Aliás, isto até não existe! Esta postura, porventura, racional e crédula, não tem feito parte da minha vivência. Sou comprometido com a causa da nossa libertação, a que continuo leal.

O que poderá significar, para um companheiro de luta de Amílcar Cabral, a participação neste Colóquio sobre a sua personalidade, pensamento e obra, realizado no “Auditório António Almeida Santos” da Assembleia da República, em Lisboa, cinquenta anos após o seu estúpido e ignóbil assassinato?

Olhando bem para os factos históricos, esta opção é justificada e tem muito sentido. Porquanto, as lutas anticoloniais foram os principais aliados atuantes da luta contra o fascismo e pela democracia em Portugal(1). Assim, as nossas vitórias e os nossos triunfos foram, em certa medida, complementares. Vale a pena reiterar este facto histórico!

Aproveito o momento para saudar e agradecer à Assembleia da República e ao seu ilustre Presidente por terem permitido a utilização das suas instalações prestigiadas e históricas para a realização deste Colóquio dedicado à memória do nosso herói, Amílcar Cabral.

Hoje, quando penso naquele dia doloroso e trágico de 20 de janeiro de 1973, não me agarro às manifestações amarguradas da grande desgraça e do perigo iminente da derrota que representava para os seus companheiros de luta, para o PAIGC e para os Povos da Guiné e de Cabo Verde. Estou virado para uma direção diferente: revelar e valorizar o seu invulgar “triunfo pós-morte”, possível, porque os seus correligionários e herdeiros políticos, com lealdade, raiva e perseverança, não permitiram que “morresse e se apagasse”, ingloriamente, com este miserável assassinato, infligindo as maiores derrotas militares ao exército colonial no teatro de guerra da Guiné, em maio de 1973, apenas quatro meses após o seu criminoso assassinato. Resta-me, uma dúvida: o que teria impulsionado o comprometimento ético e político exemplar dos dirigentes e combatentes do PAIGC?(2)

Considero que este poderia ser, também, um momento apropriado para ajuizar e relevar a sua conduta ética e de os enaltecer pela sua firmeza política, pela lealdade e fidelidade ao compromisso assumido com o seu Líder e com a luta pela libertação nacional.

Do ponto de vista histórico, interpreto ainda a realização deste Colóquio na sede do órgão máximo de soberania do Estado Democrático Português, por ocasião do cinquentenário do seu desaparecimento, como uma homenagem dignificante e mais um momento de confirmação do excecional triunfo pós-morte de Amílcar Cabral e da perpetuação da sua memória.

Em contrapartida, o que tem reservado a história aos seus assassinos e aos organizadores e mandantes do seu assassinato? Certamente, a ignomínia e o esquecimento! Além disso, não há como regenerá-los e transformá-los em defensores de direitos humanos ou em cidadãos respeitáveis, como têm vindo a intentar alguns corretores e rasuradores de verdades e de factos históricos concretos.

Referindo-me ainda aos cinquenta anos decorridos, após assassinato de Amílcar Cabral, pergunto-me: o que poderá significar para uma mente humana honesta este meio-século de vida? Possivelmente, tenha sido o tempo para o aprimoramento de ideias e para a comprovação de conclusões!

Quanto mais penso na luta que concebeu, dirigiu e ganhou, mais me convenço da excecionalidade da personalidade de Amílcar Cabral, da sua enorme lucidez e inteligência estratégica. O grande interesse despertado pela sua figura política e histórica faz-me perguntar: o quem tem este homem de singular? O que o difere de outros? O que diferiu a luta de libertação da Guiné, que concebeu e conduziu, das restantes lutas de libertação?(3)

Amílcar Cabral tinha colocado todos os recursos materiais, morais e pessoais (o seu património, os seus conhecimentos, a sua imagem, o seu prestígio e notoriedade, a sua inteligência e as suas valiosas relações pessoais) de que dispunha, ao serviço da nossa causa emancipadora e do triunfo histórico conquistado, inclusive, após o seu desaparecimento. Imaginem as renúncias pessoais que consentiu fazer, voluntariamente, abdicando-se de vantagens materiais e profissionais que tinha conseguido adquirir enquanto técnico altamente qualificado! Entendo que esta conduta magnânima constitui o seu legado ético mais precioso e mais interpelador para as novas gerações de patriotas africanos. Não estou convencido de que o comum das pessoas esteja em condições de avaliar a grandeza e a importância das dádivas pessoais de Amílcar Cabral, consagradas à causa e ao triunfo da nossa libertação.

Para atingir o patamar elevado de relações e de confiança política que tinha conseguido servia-se das suas imensas qualidades e virtudes pessoais: a probidade, a coerência, a generosidade, o humanismo, a coragem, a perseverança e uma forte convicção nos seus ideais progressistas e anticolonialistas. Esta postura pessoal significava e continua a significar a coerência política e ética, a honestidade e a lealdade à causa a que se consagrara. Na verdade, colocava acima de tudo os interesses fundamentais da luta de libertação da Guiné e de Cabo Verde. Para sintetizar a sua opção, reafirmava-se comprometido, exclusivamente, com os interesses dos Povos da Guiné e Cabo Verde.

Por sua vez, a “Geração Amílcar Cabral” desempenhou um papel histórico fundamental e decisivo para a libertação do nossos Povos, porquanto, ela foi protagonista da opção política arrojada, visionária e histórica de rutura definitiva com o Estado colonial e do impulso à preparação e à organização das lutas emancipadoras, assumindo o compromisso irrevogável do combate frontal ao colonialismo, da sua derrota e da libertação dos Povos de Angola, de Cabo Verde, da Guiné, de Moçambique e São Tomé e Príncipe.

Na visão de Amílcar Cabral, não se devia privar aos povos colonizados da oportunidade histórica única de participar na luta armada de libertação vitoriosa, transformando-se em sujeitos históricos da sua própria libertação, porquanto, é através dela (a luta) que se apropriam da sua essência e prossecução e se habilitam para assumir a libertação nacional plena, assim como, os prepara para enfrentar os custos e as imposições que requerem o prosseguimento e o sucesso do processo da sua longa construção libertadora.

Amílcar Cabral não tinha em mente uma mera “revolta de camponeses” ou algo semelhante. Ao contrário, tinha em mente, sim, uma “revolução” política e social camponesa, enquanto o fundamento da luta de libertação nacional e a condição indispensável à sua materialização e ao seu sucesso. Para que tal fosse alcançado, era essencial que houvesse a educação política prévia do campesinato. Por conseguinte, era preciso que o PAIGC se dotasse das ferramentas políticas necessárias e dispusesse dos agentes políticos estimuladores da mudança de atitudes e de opção de vida da população camponesa, isto é, que acautelasse a disponibilização de ativistas políticos preparados e capazes de intervir junto das populações envolvidas, de lhes transmitir e explicar, em palavras simples, acessíveis e persuasivas, o conteúdo das mensagens e dos objetivos políticos do Partido.

Por conseguinte, era preciso formar os ativistas políticos e os agentes da mudança de mentalidade e de consciencialização da população camponesa para a luta, em preparação, a fim de ela se libertar do medo, da insegurança, da apatia e da resignação e, simultaneamente, despertar nela a autoestima, a confiança e a motivação necessárias para resistir e combater o poder colonial, o seu sistema de dominação e os seus agentes e colaboradores.

Amílcar Cabral tinha-se encarregado, pessoalmente, da formação política e ética do primeiro grupo de ativistas políticos que deviam entrar no país para fazer a mobilização e a consciencialização política dos camponeses. Com efeito, era recomendável dotá-los de conhecimentos, de argumentos e da “arte” de comunicação com os camponeses, motivando-os a participar no combate necessário à sua própria libertação política, económica, cultural e social, isto é, conscientizá-los da injustiça das condições de opressão e exploração impostas pelos colonialistas e pelos seus agentes estrangeiros e locais e, ao mesmo tempo, persuadi-los de que era indispensável e possível, seja, a superação, seja, a liquidação da dominação colonial. Outrossim, encontrava-se subjacente ao trabalho de conscientização e de formação política dos camponeses a criação de condições primárias para a implantação futura das bases guerrilheiras.

Um dos aspetos de maior interesse pedagógico era a questão da linguagem de comunicação dos ativistas com os camponeses. Teria que ser uma linguagem simples, compreensível, persuasiva e convincente. A metodologia de aprendizagem usada incluía simulações de diálogo com os camponeses, indecisos e desconfiados.

Após essa primeira formação com os recursos próprios, registou-se a formação realizada, na República Popular da China, dos primeiros combatentes que viriam, mais tarde, a liderar o início da ação armada no território da colónia da Guiné.

Para melhor se avaliar o esforço empreendido pela liderança do PAIGC, face à complexidade das tarefas da preparação e organização da luta política e armada de libertação tem interesse uma breve avaliação da sociedade rural que se pretendia liderar e mudar de atitude e de ideia.

Em 1960, cerca de 45 anos antes, tinha sido esmagado cruelmente o último foco de resistência dos pepéis à ocupação colonial. A desfiguração e o apagamento da memória da resistência à ocupação colonial foram praticamente totais.

Encontrei alguma reminiscência da resistência em relação a Morés, onde foi instalada, posteriormente, uma base guerrilheira. Que eu soubesse, a política colonial nesta matéria conseguiu efetuar a ocultação praticamente completa da história do colonizado guineense (os “gentios”), desconsiderando e desacreditando-a, eliminando, assim, as prováveis referências inspiradoras para as gerações vindouras. Este vazio histórico de memórias sonegadas constituía uma enorme fraqueza em referenciais, logo, era preciso reinventar e recuperar os novos símbolos e exemplos de patriotismo e de resistência. Deste facto, decorre uma interrogação: o que se deve fazer, agora, para que este fenómeno omissivo não se repita e se consolidem os símbolos e os valores da libertação nacional? Em oposição, quais devem ser o lugar e o valor histórico dos símbolos coloniais impostos coercivamente às nossas sociedades colonizadas?

Quanto aos recursos humanos, estava-se perante uma sociedade camponesa oprimida, desconsiderada, pobre, analfabeta e desinformada da política e das lutas africanas mais recentes. No entanto, quando interpelada, manifestava-se curiosa, esperançosa e ávida de um tratamento humano e respeitoso e de uma vida melhor. Era imperioso e prioritário transformar essa massa humana amedrontada, passiva, desconfiada e sofredora em agentes ativos da resistência e do combate ao colonialismo.

A grande proeza política realizada pela liderança e pelos quadros políticos do PAIGC foi a transformação da maioria do campesinato guineense no sustentáculo humano e económico fundamental à realização e ao triunfo da luta política-armada de libertação. A esse milagre transformador podíamos chamar a arte de comunicação política do PAIGC com os camponeses guineenses, “transformando o impossível em possível”. A seguir, surgiriam as regiões libertadas que viriam simbolizar a antecipação do futuro, ainda, em tempo de guerra.

No domínio da arte militar, como resultado da aplicação vencedora da nossa estratégia, no início da década setenta, o regime colonial vivia, na frente armada da Guiné, por falta própria, um dilema político-militar intransponível.(4) Os seus dirigentes vinham reconhecendo pública e persistentemente que já não era possível uma solução militar para o conflito. Contudo, não estavam em condições de negociar uma saída política credível, porquanto o regime irreformável, instituído na metrópole, estava intrinsecamente ligado e dependente das colónias, não sabia nem podia sobreviver sem elas e a negociação com o PAIGC significaria a obrigação de negociar com os outros movimentos de libertação, o que deitaria por terra os fundamentos políticos e estratégicos unitários e transcontinentais do império. Em busca de uma saída improvável, fora das fronteiras, tinham tentado uma “solução militar malograda”, em novembro de 1970, com a invasão a Conacri, a capital da República da Guiné, que foi de facto um fiasco militar e político.(5) Foram derrotados, inviabilizando o propósito político-militar ilusório e extemporâneo pretendido. Com esse fracasso, o governo colonial tinha ficado desamparado e sem mais “solução militar” à sua disposição. Estava forçado a isso e era urgente que inventasse outra “solução”, qualquer que fosse.(6)

Ainda, no campo político-militar do PAIGC, a nossa preocupação maior era romper o equilíbrio estratégico, quanto antes, pois, já se tornava psicologicamente desgastante para os menos conscientes e mais débeis, espiritual e politicamente.

O Secretário-Geral do PAIGC tinha consagrado uma atenção muito especial à mobilização desses recursos militares e, especialmente, à obtenção de mísseis antiaéreos modernos, eficazes, simples e adaptáveis ao nosso contexto, a fim de se neutralizar os meios aéreos do inimigo perturbadores. Entre julho e outubro de 1972, tinha conseguido garantir o fornecimento dos mísseis AA sofisticados, Strella-2, pelo Estado-Maior Soviético e, no mês seguinte, tinham seguido para a formação vinte e quatro jovens combatentes entre os mais capacitados, sob a liderança do comandante Manecas Santos.(7) Esses mísseis AA revelaram-se, posteriormente, letais para a aviação inimiga. Entraram no teatro de guerra em fins de março de 1973 e o primeiro caça Fiat 91 foi abatido a 25 de abril, no céu do quartel de Guiledje, já sitiado. Estava em marcha a preparação da Operação Amílcar Cabral e tinha-se aberto, então, o caminho à vitória militar do PAIGC e ao afundamento do exército colonial.

No plano político internacional, o regime colonial vinha perdendo o espaço político-diplomático e, porventura, aliados. Após a Conferência de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas, em 1970, Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos foram recebidos em audiência, no Vaticano, pelo Papa Paulo VI, facto antes inimaginável. O Governo do Reino da Suécia tinha passado a fornecer anualmente um importante apoio material, não-letal, ao PAIGC. Em abril de 1972, uma missão da ONU tinha visitado, com sucesso e grande impacto político internacional, as regiões libertadas na Guiné, a convite de Amílcar Cabral. Em novembro do mesmo ano, a Assembleia Geral da ONU, numa resolução aprovada, por 104 votos a favor e 5 votos contra, saudava os progressos da luta de libertação na Guiné-Bissau e reconhecia o “PAIGC como o único e autêntico representante do Povo da Guiné-Bissau e de Cabo Verde”, cuja leitura política significava a perda da legitimidade internacional para representar e governar as duas colónias.(8) Em outubro, Amílcar Cabral tinha intervindo perante a IV Comissão da Assembleia Geral da ONU (XXVII sessão), na qualidade de observador, facto singular no historial dos movimentos de libertação. Além disso, tinha sido convidado a intervir perante uma Comissão da Câmara de Representantes Congresso americano. E, na sua mensagem do Novo Ano, tinha anunciado a constituição da Assembleia Nacional Popular, nesse ano, assim como, a intenção da proclamação unilateral da Independência Nacional, a seguir. Era esse o contexto político e militar dramático e ameaçador à sobrevivência do regime colonial, que precedeu o assassinato de Amílcar Cabral.

Se a morte trágica de Amílcar Cabral, com o seu assassínio vil e criminoso, comanditado pelo Governo colonial e organizado pelos sequazes da PIDE/DGS e demais agentes do colonialismo, planeado enquanto a última “solução militar” de salvação do império em risco de derrocada, não lhe permitiu presenciar a vitória que vinha meticulosa e judiciosamente construindo, porém, os seus herdeiros e continuadores, entre os quais me incluía, conseguiram assegurar, leal e heroicamente, o seu “excecional triunfo pós-morte”, quatro meses após o seu desaparecimento, e não permitiram que “morresse e se apagasse”, ingloriamente, desse crime ignóbil, contribuindo desta maneira para a perpetuação da sua memória.(9)

Além do mais, as vitórias militares de Amílcar Cabral e do PAIGC, no teatro de guerra da Guiné, tiveram um impacto político e militar decisivo, quer no interior, quer no exterior país, conduzindo ao afundamento do império colonial, que significou o triunfo da nossa iniciativa histórica libertadora; concorreram para o fim do regime fascista instalado na metrópole e contribuíram para que se acelerasse o passo do “tempo histórico” em Portugal, precipitando a sua democratização; enquanto, nas demais colónias, contribuíram ainda para uma maior celeridade da conclusão dos processos de libertação; porventura, em Espanha, teriam influenciado a mudança de regime franquista; e na África do Sul, concorreram para o início do desmoronamento do regime do apartheid e da sua substituição por um regime não-racial. Por fim, em África, no geral, as vitórias de Amílcar Cabral e do PAIGC geraram o incremento da autoestima e da confiança das elites e das populações, ao lhes oferecer uma perceção vencedora e mais dignificante do futuro dos Povos africanos. Desta minha visão política e histórica, por responsabilidade própria, infiro que Amílcar Cabral desempenhou um papel histórico singular de “aceleração do passo do tempo histórico”.

Outrossim, a universalização e a perpetuação da obra e do pensamento de Amílcar Cabral têm-se processado progressivamente pela extensão do seu campo de interesse, estendendo-se do campo cultural e político-operativo ao campo académico de investigação e de ensino universitário, em dezenas de países e universidades. Estou em crer que teria bastante interesse político e histórico que se incluísse nesse campo de trabalho académico toda a “Geração Amílcar Cabral”, que protagonizou uma mudança fundamental de atitude e uma rutura política e cultural de fundo, implicando toda uma geração de jovens colonizados originários das colónias portuguesas que optaram, arrojada e generosamente e em tempo certo, por enfrentar e derrotar o colonialismo opressor.(10) Essa opção política e ética visionária uniu-os por toda a vida. Constitui o importante legado político e moral, que deixaram às gerações vindouras, de unidade, de cooperação e de solidariedade de pensamento e de ação.

Neste cinquentenário do seu desaparecimento, considero essencial e útil a releitura das suas reflexões, ensinamentos e mensagens sobre a estratégia e a ação política, diplomática e militar do combate que dirigia, pelo que podem representar em ensinamentos e inspiração num tempo conturbado e interpelador, como este que o mundo atravessa.

Contudo, previno-vos de que a memória de Amílcar Cabral não é um legado passivo e indiferente, pelo contrário, é um legado vivo, interpelador e questionador, e para mais, já nos tinha exortado a que pensássemos pelas nossas cabeças. Finalmente, poder estar, neste lugar e nesta hora, a fim de participar no Colóquio dedicado à figura de Amílcar Cabral, por ocasião do cinquentenário do seu desaparecimento, e registar que à gesta libertadora, em que participei ao seu lado, está reservado um lugar de destaque na história moderna da libertação dos Povos Africanos, é um privilégio muito ratificante.

Agradeço esta oportunidade e a vossa amável atenção!
Lisboa, 13-01-2023


(1) Amílcar Cabral afirmou perante a IV Comissão da Assembleia Geral da ONU, em outubro de 1972: “Estamos mais do que nunca convencidos de que a nossa luta e a libertação total do nosso país servem os interesses maiores do povo português” …. Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Volume II, Edição Seara Nova 1977. Já tinha manifestado antes, em julho de 1961, em Dacar, nestes termos: “temos a certeza de que a liquidação do colonialismo português arrastará a destruição do fascismo em Portugal”. Em “A arma da teoria, A Guiné e as Ilhas de Cabo Verde face ao colonialismo português”, Unidade e Luta, Volume I, Edição Maspero, 1975, pág. 97.

(2) Amílcar Cabral tinha chamado atenção que o comportamento ético dos dirigentes podia ser decisivo para o triunfo ou o fracasso das lutas de libertação.

(3) É este o valioso legado ético de coerência, de dignidade, de compromisso e de patriotismo deixado por Amílcar Cabral. Diria o mesmo dos seus companheiros de armas.

(4) Entre nós, falava-se muito de Dien-Bien-Phu. Cabral dizia que o nosso Dien-Bien-Phu seria diferente.

(5) Antes tinha sido neutralizada a operação ardilosa de infiltração personificada pelos majores de serviços especiais em Pelundo, Frente Norte. A invasão foi conhecida por “Operação Mar Verde”, ver o livro de António Luís Marinho, “Operação Mar Verde”, Edição Bertrand Editora Lda., 2021.

(6) “Plano dos colonialistas para destruir o PAIGC”, documento do Secretário-Geral destinado aos dirigentes e quadros do Partido, elaborado a partir de informações provindas de fontes credíveis do interior das Forças Armadas Portuguesas, distribuído em março de 1972; consultar Amílcar Cabral, em A LUTA CRIOU RAÍZES, Edição FAC, 2018, págs. 90-102.

(7) Carta de Amílcar Cabral a Pedro Pires de 9 de julho de 1972, documentos Pedro Pires na Fundação Mário Soares.

(8) Teriam sido os sinais anunciadores da viabilidade de uma proclamação unilateral da independência da República da Guiné-Bissau, como anunciado na sua Mensagem do Ano de 1973, por Amílcar Cabral? Já, anteriormente, em sua na sua 848ª sessão de abril, o Comité de Descolonização, e o Conselho de Segurança da ONU, na sua resolução 322, aprovada por unanimidade, em que os próprios aliados ocidentais condenaram a política colonial portuguesa, tinham votado no mesmo sentido da condenação. O descrédito e a deslegitimação do Governo colonial estava mais do evidente e confirmado.

(9) Há um belo poema, em crioulo, de Daniel Rendall que anuncia, precisamente, isso: “Kabral kâ morri!” (clique para aceder à música)

(10) Incluo, nessa geração pioneira da luta de libertação nacional, Amílcar Cabral, António Agostinho Neto, Lúcio Lara, Viriato Cruz, Mário Pinto de Andrade, Eduardo Macedo Santos, Marcelino dos Santos, Alda Espírito Santo, Noémia de Sousa, Vasco Cabral, Américo Boavida, Hugo de Menezes e Ilídio Machado.